quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Manuscritos do Mar Morto anteciparam temas da atualidade

Manuscritos do Mar Morto anteciparam temas da atualidade

Escritos há milênios, alguns trechos do documento estão expostos no Museu de Israel, em Jerusalém, e outros estão espalhados pelo mundo

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Manuscritos foram escritos há cerca de 2 mil anos

Manuscritos foram escritos há cerca de 2 mil anos

Eugenio Goussinsky/R7
Uma ampla e moderna área, em uma região arborizada de Jerusalém, abriga uma das relíquias mais importantes da civilização judaico-cristã. Enquanto carros percorrem a larga Derech Rumpkin, rumo à Universidade Hebraica, em Givat Ram, os Manuscritos do Mar Morto repousam no interior do Museu de Israel, por trás de um vidro em torno de uma coluna. 
O Museu de Israel é mesmo, como diria Cazuza, um museu de grandes novidades. Passado e presente interagem em forma de história e arte, com exposições permanentes e temporárias. A arquitetura tem como intenção se inserir à vida da cidade.
Uma trilha central, com largos degraus, foi desenhada como uma continuidade da avenida de fora. Ao lado, está exposta uma contemporânea escultura do chinês Ai Weiwei sobre uma árvore da vida.
Da maquete de Jerusalém, se vê o Knesset (ao fundo)

Da maquete de Jerusalém, se vê o Knesset (ao fundo)

Eugenio Goussinsky/R7
Do lado de fora, há uma maquete da Jerusalém antiga, de onde se pode ver o Knesset, parlamento israelense, situado no outro lado da avenida.
Em meio à natureza e à modernidade, os manuscritos resistem. São compostos de textos, alguns fragmentados, encontrados em cavernas de Qumran, no Mar Morto, em 1947, e depois na década de 1950.
São apenas trechos de um exemplar antiquíssimo do Velho Testamento, em papiro. No total, são cerca de 900 manuscritos, muitos deles espalhados pelo mundo.
Os Dez Mandamentos foram entregues por Moisés ao povo judeu por volta de no ano 1250 a.c.. Algo como 1 mil anos (pouco mais de 2 mil anos atrás) depois foi escrita a compilação dos livros, o Tanakh, que conta a história da bíblia e é um acrônimo dos nomes Torá (que significa instrução), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos). Tais manuscritos são os primeiros exemplares deste livro.
Quando descobertos, os trechos foram vendidos inicialmente por um preço baixo, perto de algumas centenas de dólares. E, muitos deles, conforme conta a guia do local, Deborah, estão em local desconhecido.
"Possivelmente há manuscritos nas mãos de pessoas que nem temos ideia de quem sejam. Trechos foram comercializados por valores baixos nos anos 50 e isso abre margem para uma boa quantidade de pessoas tê-los em mãos."
Estado de interação
Ao se entrar no salão dos manuscritos, sente-se um clima de reverência. Pelo vidro, as letras impressas em hebraico antigo parecem brilhar junto com a luz artificial da vitrine.
O jato iluminado deixa o tom enegrecido mais reluzente, como se fosse dourado. Um instante em que essa imagem é contemplada conta a história de milênios.
O estado de interação de quem se aproxima do documento é tão grande, que as palavras escritas parecem sussurrar as frases no ouvido.
É impossível não comparar situação tão instintiva com a tecnologia atual, que já desenvolveu um dispositivo em óculos, que fala o que está escrito, nos ouvidos da pessoa, após um toque no texto. 
A comparação imediata revela a forte convicção de que essa tecnologia nada mais é do que a concretização em números e algoritmos de algo que sempre existiu, desde o início da humanidade. E que apenas se manifestava de forma subjetiva, mas real.
No fim, a guia Deborah ilustra como esse elo tecido de lembranças e testemunhos antigos existe de verdade. Para isso, destaca o fato de trechos bíblicos serem mesmo atuais.
Ela cita como exemplo uma passagem em que o profeta Isaías fala sobre a importância de um mundo pleno de paz, da superação de interesses mesquinhos em busca de uma sociedade mais solidária. Um discurso que se encaixa perfeitamente aos nossos tempos.
E que foi feito em tempos nos quais a guerra costumava ser a única alternativa para a preservação de um povo, diante da ameaça de invasores. Por isso, Deborah afirma:
"É impressionante ter, por meio dos manuscritos, a noção exata de como era global a visão de Isaías. Não era à toa que ele foi considerado um profeta, acertando em cheio e já passando uma mensagem para a nossa sociedade atual, de lá do passado."
* O jornalista viajou a Israel a convite do Ministério das Relações Exteriores israelense
Vídeo: Veja a mais antiga cópia dos Dez Mandamentos

    Mercado antigo de Jerusalém vira centro de convivência entre grupos

    Mercado Shuk, em Jerusalém, tem ruelas apertadas
    Mercado Shuk, em Jerusalém, tem ruelas apertadasEugênio Goussinsky/R7
    As lendas se misturam à realidade no mercado árabe de Jerusalém, o Shuk (mercado, em árabe). Atualmente, em meio a ruelas apertadas com lojinhas vendendo especiarias, camisetas, trajes árabes, lembranças cristãs e judaicas, a tecnologia pode ser vista no celular do senhor de turbante sentado pacientemente em frente ao seu comércio.
    O Shuk sempre passou por mudanças, mas manteve uma essência que se mistura ao aroma de especiarias do local. Cada novidade, é claro, vem cercada de reclamação, como em 1931, quando foi construída a terceira seção deste mercado que surgiu há mais de 800 anos, nos tempos do Império Bizantino.
    Com a nova seção se multiplicaram reclamações dos antigos comerciantes, temerosos em ver seus negocios prejudicados.
    Por sua antiguidade, o mercado reflete muitas das complexidades de Jerusalém. Muitos palestinos, porém, estão bem inseridos no ambiente. Outros trazem para lá sinais do conflito com Israel.
    Nassr, 42 anos, é um dos que gostam da vida por lá. É um comerciante cujo olhar pacífico prevalece por de trás dos óculos. Diz nunca ter tido problemas de convivência com judeus ou outros grupos.
    "Em todo segmento há os bons e os maus. É do ser humano. A imagem de conflito, que existe, é ampliada pela mídia. Eu namoro com uma moça judia, sempre convivi bem com todos os povos, desde que haja o respeito", afirma.
    Enquanto estampa uma camiseta, ressalta que o Shuk se tornou um excelente negócio para a prefeitura de Jerusalém. E mostra uma conta de luz, declarando que não é fácil o comércio local, com muita concorrência e nem sempre com a quantidade de vendas ideal.
    "Olhe o valor que pago por esse espaço pequeno: 330 dólares (R$ 1.250,00) por mês. É uma fortuna, a prefeitura fatura bastante com nosso negócio. De impostos, pago mais ou menos 700 dólares (R$ 2.600,00) por mês", explica.
    Enquanto ando pelo chão de pedras, vejo como eram preconceituosas algumas frases ditas sobre o local nos anos 70, 80 e 90. Como as que envolvem os barbeiros. Alguns falavam que era um ato de coragem fazer a barba no Shuk, em meio a tensão entre judeus e árabes.
    Mas o barbeiro Sami, de 45 anos, até me convida para um café enquanto raspa a lateral do cabelo de um menino, bem ao estilo moderno. Mantém o local do mesmo jeito que herdou, de seu pai, Awad, que ainda atua.
    As únicas novidades são alguns equipamentos um pouco mais modernos, como o barbeador elétrico e um sistema de iluminação mais eficaz no espelho.
    Iluminação que já permite que o velho tabu de limitar o horário de passeio no mercado até o início da tarde seja superado.
    Hoje, de noite, as ruas ficam abarrotadas de turistas, andando lentamente e observando os produtos sob a luz elétrica que foi instalada há alguns anos.
    Observado pelo pai, Sami conta que foi seu avô quem abriu a barbearia.
    "Aqui está a minha vida, tenho algumas queixas da rotina aqui, mas no geral estou feliz. Nossa situação poderia ser melhor, mas meu trabalho me mantém satisfeito. As resoluções dos problemas estão em outra alçada."
    Mais adiante, quase na entrada do quarteirão judaico, o vendedor da barraca de frutas é mais hostil. A desconfiança faz parte da vida dele. Assim que cumprimento seu irmão, que está sentado rente ao muro, ele me pergunta se está acontecendo alguma coisa.
    E se nega a dar qualquer resposta sobre suas perspectivas e sua vida no local. "Não, não, sem perguntas, sem respostas", diz, com uma revolta contida no olhar.
    Conflitos, apesar de ainda existirem, têm sido raros. Há segurança no local, com guardas se misturando aos viajantes e comerciantes.
    No geral, prevalece a convivência daqueles que fazem do mercado um ponto de passagem para seus destinos na Cidade Velha: cristãos, judeus, muçulmanos e armênios.
    E se somarmos o otimismo de Nassr, a ponderação de Sami e a revolta do vendedor de frutas e depois dividirmos por três, chegaremos a conclusão de que a moderação dá o tom em Jerusalém, estimulada por aqueles que não negam a existência alheia. Até precisam dela como solução. Para seus negócios e para suas próprias vidas.
    *O jornalista viajou a convite do Ministério das Relações Exteriores de Israel

    Premiê de Israel intriga oposição ao trocar ataques por negociações

    Benjamin Netanyahu defende diálogo em conflito
    Benjamin Netanyahu defende diálogo em conflitoReinhard Krause/Reuters - 11.11.2018
    A possibilidade de o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, convocar novas eleições, a pedido de alguns ministros, tem deixado a oposição intrigada. Netanyahu tem mostrado habilidade política, segundo a imprensa local, ao fazer mistério em relação aos seus próximos passos.
    Afinal, sem perder representatividade como político de direita, ele está conseguindo acuar alguns opositores, ao fazer um discurso que se aproxima do deles. Nos telejornais, nos bares, nas conversas familiares a pergunta é a seguinte: qual a estratégia que Netanyahu tem em mente?
    Nos últimos dias, Netanyahu tem ressaltado sua intenção de negociar sem necessitar da guerra. E o cessar-fogo com o Hamas, aceito na última semana, também vem de encontro às aspirações dos opositores.
    Nem por isso, o mandatário recebeu o apoio deles, como disse Dario Teitelbaum, secretário-geral da União Mundial do Meeretz (partido de esquerda), considerada uma sigla apegada às suas convicções, que, no entanto, passou a ter mais dificuldade em criticar a decisão e a nova postura do governante.
    ¨Não aprovamos o cessar-fogo de Netanyahu, aceitamos.¨
    Teitelbaum ressalta que é uma conjectura a tese de que, para o governo israelense, é mais interessante negociar com o Hamas para impedir a Jihad Islâmica de vencer a disputa pelo controle de Gaza.
    Ambos os grupos disputam a região, mas, segundo especialistas, a Jihad tem o apoio do Irã, o que seria uma ameaça maior para Israel. Teitelbaum pondera:
    ¨Não é possível dizer que seja isso. O que ocorreu é que Hamas e Jihad realizaram os bombardeios, mas o cessar-fogo só foi negociado e aceito pelo Hamas.¨
    Para ele, que mora a 7 km da fronteira, a situação dos moradores da região é o que mais importa. Assim como a opção por uma solução humanitária.
    ¨Esta questão não é apenas política e estratégica. O que tem de ser levado em conta é como todo esse conflito tem afetado a vida de quem mora nesta área¨, finaliza.
    * O jornalista viajou a convite do Ministério das Relações Exteriores de Israel

    Museu em Jerusalém conta a história de Israel pela música

    Harpa (esquerda) é exposta em museu
    Harpa (esquerda) é exposta em museuEugênio Goussinsky/R7
    David, quando era pastor, acalmava o Rei Shaul com o toque mágico de sua harpa. Muitas vezes, no silêncio da noite em um campo de concentração, ouvia-se um cantarolar distante de algum prisioneiro.
    A música sempre esteve presente na trajetória do povo judeu. No centro de Jerusalém, próximo à Cidade Velha, foi criado o Museu da Música Judaica, que traz informações que comprovam a forte relação da música com a história do povo judeu.

    A entrada lembra a de antigas residências bíblicas. O estilo do local remete a Jerusalém antiga, em meio a compartimentos com vitrines cheias de instrumentos antigos.
    O primeiro deles é uma harpa idêntica à usada por David. Ao lado, flautas milenares, kinkins, adonedos, azuzes, charongo e tars.
    Então descobrimos como sons e ritmos estiveram presentes durante o exílio babilônico (605 a.c); nos tensos momentos na Pérsia (478  a.c); no período grego (333 a 165 a.c); no conflito romano (66 d.c a 73 d.c); na interaçao e nas perseguições dos mouros na Península Ibérica (711 d.c a 1492 d.c); no convívio no Marrocos e nos tempos do Império Otomano (1299 d.c a 1918 d.c).

    Momentos difíceis, como a expulsão da Peninsula Ibérica, em 1492, tiveram na música uma espécie de salvação. Com locais como o centro judaico de Sfat, a crença religiosa e espiritual se fortaleciam, contagiados pela harmonia de composições muitas vezes improvisadas.
    Local lembra tempos antigos
    Local lembra tempos antigosEugênio Goussinsky/R7
    O museu conta também como a música fez parte da vida dos judeus na Europa Oriental, nos shtetls (vilarejos) dos séculos 17, 18 e 19, ao som do violino acompanhado de um insinuante clarinete, que parecia driblar as perseguições com uma música surpreendente e comunicativa.
    Muitas das composições se eternizaram, como retratos de cada época. O Lecha Dodi, por exemplo, virou reza. O Heveinu Shalom, de Avraham Idelsohn, virou lenda. A Yerushalaim Shel Zahav, de Naomi Shemer, expressa ternura e esperança.
    O diretor do local, Eldad Levi, costuma dizer que a fundação do museu foi motivada por um desejo e que, segundo um grande estudioso, este desejo é o que dá força para as pessoas seguirem em frente.
    Desejo e dever, neste caso se fundem. É um tipo de desejo que prevalece em Jerusalém, quando multidões caminham pela rua Jaffa rumo a Cidade Velha, em nome de algo maior do que elas mesmas.
    Tentando conviver e existir, acumulando experiências que fundem as culturas judaica, cristã e árabe. Um desejo que resiste e se multiplica em várias melodias.
    *O jornalista viajou a convite do Ministério das Relações Exteriores

    O sol de Jerusalém tem um brilho especial

    Jerusalém mistura passado e presente
    Jerusalém mistura passado e presenteFoto: Eugênio Goussinsky
    Ao cumprimentar o motorista druso, percebeu que o braço direito daquele homem estava paralisado. O motorista era corpulento, tatuado e sério. Ao estender o braço esquerdo para o cumprimento, apenas disse: fui soldado de guerra.
    E mais nada falou durante o trajeto do aeroporto Ben Gurion, perto de Tel Aviv, para Jerusalém, na famosa estrada que liga as duas cidades.
    O viajante logo percebeu a presença da guerra passada, espalhada discretamente nas laterais do trajeto, em bandeiras de Israel hasteadas sobre pequenas construções destruídas, em casas milenares erguidas apenas em forma de esqueleto, em rastros de escadas despontando no meio dos bosques.
    Amos Oz, em seus livros, conta como foi aquela guerra pela independência, quando os árabes bloquearam a estrada e fizeram daquele trecho um tormento para os comboios. Atiradores ficavam postados no alto das colinas para atacar soldados e cidadãos judeus.
    Jerusalém na época ficou acuada, com seus moradores reclusos em seus pequenos apartamentos, sofrendo com o racionamento de água e alimentos.
    Mas ao mesmo tempo que reflete sobre o palco daquele período doloroso, a ausência de palavras do motorista druso emite um sinal de conforto depois da dor.
    No retrovisor, há um retrato de seu filho, um menino. E símbolos de seu povo, inserido na rotina de Israel a ponto dos homens e mulheres ja servirem o Exército.
    O viajante captou tal sensação de conforto. Ela logo se projetou em toda aquela paisagem, mostrando que algo prevaleceu sobre aquele período de incertezas e mortes. Os bosques e ciprestes continuam por lá, belos e imponentes. A terra, a brisa, o aroma de campo são os mesmos.
    Na estrada, carros se acumulam já formando trânsito na entrada do túnel que dá acesso à cidade. Israelenses misturam suas rotinas a toda aquela história e misticismo emanados pelo cenário que os acolhe.
    Em seguida, ele já se vê na cidade, contemplando as construções beges e toda a característica peculiar daquele local cercado de montes.
    Vê as pessoas na rua, judeus religiosos, cristãos, árabes, moças, crianças de bicicleta e estudantes, entre tantos, vivendo aquele ritmo frenético que mantém o presente permanentemente observado pelo passado.
    A manhã é límpida em Jerusalém. Como em nenhum outro local, uma luz resplandece no ar, dando sentido ao apelido de Cidade de Ouro.
    Ao passar por um parque na rua King George, ele sente uma pontada desta luz cutucando seu rosto e então olha para cima.
    O sol resplandece cheio de vida, muito mais aquecendo do que queimando. O sol de Jerusalém. A cidade de três religiões. Sentir aquele brilho, para ele, valeu como uma reza.

    Doceira húngara se tornou símbolo na luta contra a intolerância

    Menino já levou doce sem precisar pagar
    Menino já levou doce sem precisar pagarReprodução/Pixabay
    O gosto do mousse de chocolate permanece até hoje. Durante a semana, à tarde, eu costumava passar na doceira da Pedroso Alvarenga, do outro lado da esquina de casa.
    Ir lá era um dos meus hábitos naqueles tempos sem compromissos, em meio às brincadeiras com vizinhos, às idas à papelaria ou ao mercadinho Chelmi.
    A dona do local era húngara, vinda de uma cidade do sul do país. Tinha os cabelos curtos, claros, suavemente penteados para os lados. E olhos azuis que transmitiam uma alma transparente.
    Falava sobre o sofrimento durante a guerra, quando a Hungria passou do controle nazista para o comunista. E abençoava o Brasil por ser a terra que, bem ou mal, a acolheu.
    Como uma forma de retribuição, resolveu abrir a doceira, com uma sócia alemã, e apresentar para os brasileiros de São Paulo o que seu país, e ela, tinham de melhor.
    Assim, seu estabelecimento foi pioneiro de receitas que muitas redes, posteriormente, adotaram. O mousse era um deles. E o petit-four com geleia era outro.
    Numa tarde, com meu amigo Denis, estávamos admirando o balcão repleto de delícias, quando a ouvimos contar um pouco sobre a história da torta de ricota que aprendera a fazer com sua vó, na casinha da cidade natal.
    Disse que, muitas vezes, faziam sob o som de bombas. E que, menina ainda, teve a ideia de acrescentar uma uva passa cada vez que ouvia um estrondo. A vó adorou a ideia.
    Naquele turbilhão que era a infância, me intrigava o fato dela não ser como outros adultos que não me davam atenção.
    Sentia-me acolhido pelo modo como me tratava, me deixando até levar um doce sem pagar. E não foi só uma vez.
    Ela e sua sócia deixavam-me ficar olhando os doces, não me davam bronca quando brincava lá dentro com meus amigos. E na despedida, ela sempre mandava um abraço para os meus pais.
    Anos depois, a doceira deu lugar a um grande empreendimento imobiliário. Assim como a minha casa. Nunca mais havia tido notícias dela. Nunca mais havia experimentado doces tão saborosos.
    Até que um dia soube, por minha mãe, que ela ainda estava viva e, insistente, abriu uma nova doceira na São Gabriel.
    Lá fui eu, com minha esposa e minha mãe. No reencontro, recebi um abraço que me levou de volta à infância, àquelas tardes cheias de esperança. E a levou de volta a muitos de seus sonhos incompletos.
    Ao chegar, vinda da guerra, ela buscava o ideal da paz no mundo, através de suas receitas. Mas a reencontrei em um mundo intolerante, inclusive com o primeiro-ministro de seu país, Viktor Orbán, encabeçando uma onda xenófoba na mesma Europa.
    Quando falei das dificuldades atuais, ela, com aqueles mesmos olhos azuis se impondo sobre sua pele envelhecida, logo mostrou por que não desistia.
    E de que maneira todo aquele trabalho de outrora, que tanto me marcou, tinha valido a pena. Por isso prosseguia em seu objetivo. "As coisas ainda não estão tão difíceis como naqueles tempos. O ainda é nossa chance." Então sorriu para mim, docemente.
    Vídeo: Roberto Justus mostra húngaro fluente no Legendários na Web

    A alegria tomou conta do idoso no Dia das Crianças

    Ele costumava brincar de pega-pega
    Ele costumava brincar de pega-pegaReprodução/Pixabay
    Conduzido pelo acompanhante, o velhinho entrou na loja de brinquedos do shopping. Cabelos lisos para trás, bem penteados, calça marrom com cinto largo, uma camisa confortável e uma malha de abotoar. Pediu que encostasse a cadeira de rodas no fim do corredor cercado de bonecos.
    Na época em que foi menino, não havia nenhum Super-Homem, como aquele embalado, de vinil e musculatura sob o traje azul. Bem que ele sonhava com brinquedos quando andava pelas ruelas de Varsóvia, tentando encontrar comida.
    As únicas atrações eram as aulas no cheder (quarto de ensino). Mesmo fraco, encontrava forças não sabia de onde, para aprender o alfabeto, a história do mundo. Sem entender direito por que os judeus estavam confinados lá no gueto.
    Brincadeiras, ele descobria. Não tinha dinheiro, mas um dia achou um pião e, com um barbante, o fazia girar no asfalto irregular. Comparava o brinquedo com a vida das pessoas de lá que giravam giravam no mesmo lugar.
    Também tinha o pega-pega que ele fazia com o Shaul e o Joseph durante as tardes cinzentas, entre as construções de tijolos pintados.
    Até quando as tropas entraram lá e levaram ele e seus pais para os campos de concentração, após enfileirarem todos e escolherem os que não morreriam, ele conseguiu encontrar um jeito de brincar.
    No trem abarrotado, ficou tirando par ou impar com o Shaul a viagem toda, até Auschwitz-Birkenau. Eles se entreolhavam com ternura, como se dissessem um para o outro "Estou aqui".
    Isso lhe dava segurança. As vozes baixas, quase sussurros deles, quebravam o silêncio aterrorizante, junto com o som da locomotiva.
    Foram cerca de três anos duros. Acordava antes do nascer do sol, via seu pai ser obrigado a ir trabalhar nos banheiros e a mãe a varrer os alojamentos, sob ordens ríspidas, quando não com violência.
    Quase não comia. Somente duas batatas por dia e um pedaço de pão, que comia no galpão, junto com outras centenas de pessoas.
    As brincadeiras, porém, não cessaram. Mesmo que estivesse pesando menos de 20 quilos, quase tendo morrido de cólera.
    Ao lado do Shaul, de quem acha que pegou os intermináveis piolhos, continuava com o velho pega-pega (quando os guardas armados não viam). Também conseguiram algumas cartas para jogarem escondidos. 
    Brincar era importante porque ativava a imaginação dele. Depois, à noite, no galpão, ele via que a lua continuava lá, linda, para todos, assim como as estrelas e as árvores que balançavam em sincronia. Elas lhe mostravam a vida como uma dança e não matança.
    Ele também tinha a sensação de que elas lhe diziam para acreditar que um dia teria condição de ter um monte de brinquedos, que dividiria com o Shaul e todos os seus amigos.
    Agora, depois de anos e de ter feito a vida no Brasil, ele, na cadeira de rodas, olha para o acompanhante, com um ar de alívio. E depois para o vendedor, com orgulho.
    Pede o maior Super-Homem; um carrinho de controle remoto moderno; um Falcon último tipo; uma seleção de blocos de montar Minicraft; uma caixa de Lego Jurassic World; um urso de pelúcia gigante; uma caixa grande de Playmobil e um Banco Imobiliário.
    Tudo para dar para os netinhos e para crianças da creche. Esta é sua maior satisfação. Ou melhor, uma das maiores. Antes de sair, quando a cadeira de rodas está quase no corredor do shopping, ele pede para o acompanhante voltar.
    Quer comprar um trenzinho. Só para si. "O Shaul vai achar graça", balbucia consigo. Pega o embrulho nos braços, se presenteia e sorri. Sempre soube que o Dia das Crianças também foi feito para ele.

    Palhaços Sem Fronteiras alegra rotina em campos de refugiados

    Márcio Ballas (foto) foi bem recebido nos campos
    Márcio Ballas (foto) foi bem recebido nos camposDivulgação/Márcio Ballas
    O que faz uma pessoa sobreviver em um campo de refugiados? Para quem está de fora, é difícil se colocar no lugar de alguém que foi obrigado a fugir de seu país, esteve perto da morte e se depara com a permanente insegurança para si e para seus familiares.
    Fora a falta de comida. A falta de infraestrutura. A falta de um motivo para sorrir. Idealizado pelo espanhol Tortell Poltrona, o Palhaços sem Fronteiras surgiu justamente para realizar a façanha de transformar em alegria a dura realidade de quem vive essa situação. Nem que seja uma alegria momentânea.
    O brasileiro Márcio Ballas, artista e palhaço com experiência internacional, viu de perto essa magia se manifestar. Em uma de suas primeiras experiências, foi o mais jovem membro da comitiva do Palhaços sem Fronteiras, ao lado de profissionais ingleses, belgas e franceses, que se apresentou na fronteira com a Albânia, para refugiados da Guerra do Kosovo, em 1999.
    Aos 46 anos, Ballas, nascido na capital paulista, nunca se esquece dessa passagem. Enquanto fala, deixa transparecer nas palavras a emoção que ainda permanece nele. Missão cumprida, nesse sentido. Afinal, se ela se manifesta nele, é um sinal de que até hoje também está presente naqueles que, em situação tão dramática, precisavam se alimentar do sorriso vindo de uma palhaçada. Que, também ato de amor, funciona como uma carícia. Ou um beijo.
    "Ouvi falar do Palhaços Sem Fronteira quando estava estudando para clown (palhaço), na França. Falei: 'nossa, nem sabia que isso existia'. Na época não havia internet. Então fui lá, bati na porta e disse, 'Oi, sou do Brasil, sou um palhaço brasileiro e quero muito viajar com vocês'. Alguns meses depois eles me convidaram para minha primeira viagem, para os campos dos refugiados kosovares e fizermos uma jornada de duas semanas lá."
    Foi uma situação completamente inusitada. No meio da vastidão cercada de montanhas, eles foram surgindo lá de longe, cortando o silêncio da estrada e a monotonia da vida em um campo de refugiados.
    "Um campo de refugiados é um grande acampamento, com várias barracas. As pessoas ficam esperando pela sorte, pelo destino. Não acontecem muitas coisas lá, às vezes chegam médicos, mantimentos. Imagine o que é, de repente, chegarem duas vans com caras estranhos, com trancinhas, desembarcando bolas de malabares, trapézio! Isso muda toda a rotina. Já a chegada é uma novidade. As pessoas falam 'opa, o que é isso?' Vão estranhando e vão olhar ver o que está acontecendo."
    E o que se passa na cabeça de alguém que tem a obrigação de ser engraçado em um ambiente complicado deste tipo? Ballas mostra que o palhaço nada mais é do que um espelho do ser humano, em sua luta diária para superar seus próprios fantasmas: o medo, a sensação de fragilidade. E, como bom palhaço, ou humano, ele soube transformar tudo isso em gargalhadas sinceras.
    "Fazíamos dois campos de refugiados por dia, era muito impressonante. Fiquei muito impressionado, nunca tinha ido e digo que estava com muito medo: eu era o mais novo da turma; os refugiados só falavam albanês, bem diferente de francês, inglês, espanhol e, por fim, estávamos no meio da guerra."
    Aos poucos eles foram fazendo a montagem do espetáculo. Ballas conta que o fato de a preparação ser aberta já é uma atração, com os artistas se maquiando em público.
    "O espetáculo na verdade começa desde a nossa chegada. O momento em que a gente chega já é um evento e alguma coisa incrível já começa a acontecer."
    A apresentação
    Então, como dizem os americanos, "It´s show time!" ( É a hora do show!).
    "Eu estava com muito receio. Seria possível criar em um lugar assim? Será que vão rir, gostar, entender? E a gente fez um show que tinha poucas palavras, muitos sons e as pessoas gostaram muito, ficaram muito encantadas, batiam muita palma no final. Ficaram lá e me deixaram muito emocionado. Foi algo muito especial, a primeira vez em que me apresentei em um local tão dificil, sem estrutura. Não tinha luz, não tinha nada. Só o humano conversando com o humano."
    No fim, os palhaços deram o protagonismo para as pessoas dos campos.
    "No final a gente falava para eles fazerem algo em troca. Era o momento deles serem protagonistas. Em alguns dos campos eles dançaram danças típicas, em outros ensinaram músicas para a gente, em outros convidaram para irmos às barracas e fizeram um chá e pequenas comidinhas. Era uma hora muito bonita porque era a hora da troca, fomos lá mostrar o que sabíamos fazer, mas eles também tiveram essa oportunidade."
    Outra viagem de Ballas foi para Madagascar, na África. Lá o grupo fez espetáculos em favelas, em lugares "muito muito muito pobres", em prisões para crianças, de 12,13,14 anos, que "foi algo muito forte". Mas eles conseguiram colorir, pelo menos por um tempo, um lugar tão cinza, como ele conta.
    Um hábito do Palhaços Sem Fronteiras, que ainda atua e ampliou há dois anos suas atividades para o Brasil, é deixar um nariz de palhaço, como presente, para cada uma das pessoas nestes campos. Ballas, que continua a atuar no ramo brasileiro do grupo, conta a razão desta atitude.
    "Fazíamos uma grande roda e distribuíamos os narizes. Era um momento muito bacana e emocionante, porque todos colocavam o nariz e ficava todo mundo igual. Um monte de palhaços de diversas partes do mundo, olho no olho. Era uma maneira de deixar alguma coisa com eles lá. Assim, depois, eles poderiam se lembrar desse momento, brincar com esse momento, fazer algo com o nariz, brincar com o nariz. Era uma maneira de deixar alguma esperança, alguma fagulha lá para eles, depois que a gente fosse embora."
    Veja a galeria: Refugiados buscam oportunidades em feira de empregos na Alemanha

    Hebraica completa 50 anos de futsal com emoção e muitas histórias

    Clube mantém tradição no esporte
    Clube mantém tradição no esporteReprodução/Wikimedia Commons
    Os refletores no teto, ao lado de colunas de suporte inclinadas e paralelas. As cadeiras de plástico azuis. O elevado em que ficam o mesário, protegido por uma pequena cerca. O piso da quadra de madeira, envernizado. As cores amarela, azul, vermelha, que desenham em arcos as marcações de cada esporte. Mas principalmente do futsal.
    Várias gerações participaram
    Várias gerações participaramEugenio Goussinsky/R7
    Esses componentes cresceram comigo. Em alguns tempos os via com mais frequência. Em outros, ficava afastado por anos. Mas aquele ginásio dos Macabeus, no coração da Hebraica, se assemelhava a um templo do futsal para os associados. Sem se esquecer do Centro Cívico, mais amplo.
    No último sábado (6), a Hebraica comemorou 50 anos de futsal. Do velho futebol de salão. Foram - e continuam sendo - muitas emoções, títulos, tradição e histórias.
    Ao longo do tempo, o clube se tornou uma das referências do esporte em São Paulo. A comemoração teve a presença de ex-jogadores (do clube e da seleção brasileira) e dos meninos que atuam no momento, para disputas especiais.
    Nos anos 70, parecia que fazia séculos que o esporte já existia por lá, quando, aos sábados, meu pai me levava para as competições internas ou oficiais, entre sócios.
    Eram dias festivos, em que me expandia ao ver meu potencial se desenvolver em meio a dribles, desejo de vitória, mas também de amizades. Mesmo que silenciosas e que se mantiveram ao longo dos anos, por meio de olhares ou da simples percepção da presença.
    Nunca me esqueço do gol de bicicleta que fiz na quadra dos fundos, após receber passe do Fábio Skujis. E das tabelas que fazíamos naquelas manhãs ensolaradas que pareciam infinitas. Joguei também no competitivo.
    Mas, lá, ao lado de ferinhas como o Fabinho, o Celsinho, o Garrincha, o Alessandro "Botijão" (que um dia vi, pela TV Cultura, jogar pelo Eintracht Frankfurt) a dificuldade era maior. Mesmo assim, fiz boas jogadas.
    Como o lançamento que dei para o Valdir, de balãozinho, fazendo a bola quase alcançar o teto do ginásio (na minha imaginação) para cair pronta para o chute e o gol. Até o Ernani, o técnico, íntimo do futsal, veio me elogiar depois do lance.
    E, no treino seguinte, ao anunciar minha convocação para o próximo jogo, lembro-me do sorriso que dei para o meu pai, que estava do outro lado da quadra.
    No jogo da vida, fui substituído pelo meu filho Raul. Agora é ele, que iniciou com o tio Neimar, quem corre por aquele quadrilátero infinito, tentando desenhar sonhos, descobrindo sua identidade.
    Raulzinho e sua turma se misturam, entre tantos, a nomes como Décio Berman; Menta; Robertinho; o saudoso Marcelo Nigri; Marcelo e Kiko Melsohn; Alexandre Brett; Gersinho Gildin; Ronaldo Gabbay; Ary Zeckcer; Henry Sztutman; Deyvid Arazi; Sidney e Charles Buchman; Sérgio e Jacques Schop; Meyer, Flávio, Beto e o saudoso sr. Edgar Nigri; Moishe, Quinho e o saudoso sr. Hélio Waintraub. 
    E também a palavras e expressões espontâneas como bola; "p..."; ô juiz; professor; marca o pivô; briga; cobertura; irmão; você é ruim; lá fora eu te pego; boa; valeu; tá lá!!!!
    A molecada ouve o som do apito, o elogio e a bronca do Tinho e do Dudu, sentindo aquele cheiro característico do éter e aprendendo com os erros e acertos.
    Alguns das antigas ainda estão por lá, assistindo, lembrando, sendo pais, organizando, jogando como veteranos. Cabelos ralos, barriga avantajada, joelho estourado, mas uma sensação de aconchego. A velha conversa que mata a saudade. Um sentido mais conhecido, para o desconhecido da vida. O futsal é este sentido. Enquanto isso, no cronômetro do placar, os segundos vão passando, continuamente.
    Veja a galeria: Sucessor de Falcão recebe proposta para ser o jogador mais bem pago da história do futsal

    Mesmo com Brexit, Londres continua aberta para a Europa

    Lembrança do anoitecer foi interrompida por notícia
    Lembrança do anoitecer foi interrompida por notíciaReprodução/Wikimedia Commons/Pixabay
    Colocou o waffle na torradeira, no restaurante do hotel em Londres. O local, no bairro Aldgate, era aconchegante, com tapete e bancos acolchoados em torno das mesas.
    Um som ambiente dava uma sofisticação ao recinto. Ele observava isso enquanto o waffle, travado lá dentro, não voltava. E não voltou.
    Ao se sentar à mesa, para o café da manhã ao lado da esposa e do filho mais novo, ficaram rememorando o que haviam feito na capital inglesa, desde a chegada de trem.
    Lembraram que perceberam, já da janela do vagão, algumas mudanças assim que chegaram ao país, após atravessar a fronteira: casas de estilo mais rústico, inglês, substituíam as habitações mais leves dos campos franceses.
    Logo sentiram como Londres é mesmo eclética, apesar de uma dose de independência em relação à Europa, ainda mais em tempos de Brexit. Independente, mas aberta.
    Ao saírem do metrô, subiram as escadas e encontraram uma Piccadilly Circus abarrotada de pessoas.
    As crianças ficaram impressionadas com aquela mistura de construções históricas com painéis modernos. Foram ao lotado restaurante chinês, em Chinatown. E visitaram lojas gigantescas da Lego, com construções incríveis, e da M&M.
    No dia seguinte, o frio congelante os obrigou, ao lado do Palácio de Buckingham, a entrar em um ônibus turístico para percorrer a cidade de uma forma mais aconchegante.
    E iam ouvindo as histórias, com fone acoplado, olhando para a paisagem histórica e urbana: sobre o Palácio de Saint James, a Tower of London, a Abadia de Westminster, o tradicional bairro de Bankside com construções antigas.
    E foi com essa imagem do anoitecer de Londres, envolvendo o Tâmisa e a famosa roda-gigante, que de repente a conversa foi interrompida.
    Um funcionário do hotel entrou esbaforido no restaurante e lhes disse, em pânico:
    "Vocês têm de sair, são os últimos do hotel, todo mundo já está na rua!"
    A fleuma britânica deu lugar à exasperação. Os três saíram rápido. Do outro lado da rua St. Alie, dezenas de hóspedes estavam parados, de pijama, de chinelos, de ceroulas. Alguns até sem camisa no frio cortante.
    O filho mais velho dele veio correndo da esquina, retirado que foi às pressas do quarto.
    O alarme de incêndio havia soado. Então ele se lembrou do waffle, aquele que não voltou da torradeira... Como não voltam muitos lindos momentos, que levam as pessoas a festejar a vida, achando graça do inusitado.
    Foi o que aconteceu minutos depois. Todos brindaram no saguão, com trajes informais. São estes momentos, feitos de carinho e saudade, que, como o waffle travado, não voltam. Mas, por outro lado, são momentos que encantam e aquecem, sem queimar.
    Veja a galeria: Britânicos tomam parques e praias para aproveitar o sol e temperaturas de 30º C

  • Saiba quais são as semelhanças e diferenças entre Trump e Bolsonaro

    Trump e Bolsonaro têm origens diferentes mas se assemelham em vários temas
    Trump e Bolsonaro têm origens diferentes mas se assemelham em vários temasReuters/Brian Snyder/19-09-18 e Adriano Machado/05-09-18
    As origens de Donald Trump e Jair Bolsonaro são distintas. E as carreiras políticas também. Trump iniciou tarde, vindo do empresariado. E Bolsonaro já é político há mais de 30 anos. Mas, apesar das diferenças, ambos têm muitas semelhanças, no discurso polêmico e na defesa de ideias políticas de extrema-direita.
    Donald Trump, 72 anos, nasceu em 14 de junho de 1946, em Nova York, e já era milionário desde a infância, tendo herdado do pai, Fred, a fortuna feita principalmente no ramo de construção civil. Posteriormente, consolidou um império e, décadas depois, iniciou sua trajetória política.
    Já o candidato à presidência do Brasil, Bolsonaro, 63 anos, nasceu em uma família de classe média no interior paulista (Glicério) e teve uma formação basicamente militar, cursando a Escola Preparatória de Cadetes do Exército e a Academia Militar das Agulhas Negras, onde se formou em 1977. Seguiu carreira e chegou a ser capitão do Exército, antes de se tornar político, nos anos 80. Veja agora algumas semelhanças e diferenças entre ambos.
    SEMELHANÇAS
    Métodos ditatoriais e ditadura
    Trump - EUA deveriam usar afogamento como método de interrogatório contra membros do Daesh.
    Bolsonaro - Ele é defensor da ditadura militar do Brasil, ocorrida entre 1964 e 1985, e do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que foi chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos que atuaram na repressão política, durante o regime militar.
    Mulheres
    Trump - Já disse, em conversa gravada, que as mulheres, ao completarem 35 anos, devem "sair de cena". Num comício, ele sugeriu que uma das mulheres que o criticaram não era atraente o suficiente para ser assediada. Em discursos posteriores, ressaltou a importância das mulheres.
    Bolsonaro -  Em fala no plenário da Câmara, em 2014, Bolsonaro disse à deputada Maria do Rosário (PT-RS) que não a estupraria “porque ela não merece” (Depois disse que  tinha se exaltado). E, em palestra, já afirmou, em tom jocoso: “Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher.” Para tentar reverter a fama, passou a trabalhar para se recuperar diante do eleitorado feminino, gravando depoimento elogiando a sua filha.
    Quilombolas e afrodescententes 
    Trump - Governante já fez críticas a países com maioria negras, dizendo "por que temos todas essas pessoas de países de m... vindo para cá?". Ele se referia a países africanos e ao Haiti.
    Bolsonaro - Candidato já deu, em palestra, a seguinte declaração: "Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles." Em julho último, Bolsonaro visitou Parauapebas (PA), cidade a cerca de 530 quilômetros de Belém, onde participou de evento organizado por Paulo Quilombola, da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado do Pará.
    Imigração e refugiados
    Trump - Ele defende que os cerca de 11 milhões de imigrantes ilegais sejam deportados.
    Bolsonaro - Já afirmou: "Não podemos abrir as portas para todo mundo."
    Acesso da população às armas
    Trump - Presidente já afirmou em seu governo que a segunda emenda da Constituição americana, que protege o direito ao porte de armas no país, jamais será revogada.
    Bolsonaro - Em seu programa de governo há o seguinte item: "Reformular o Estatuto do Desarmamento para garantir o direito do cidadão à LEGÍTIMA DEFESA sua, de seus familiares, de sua propriedade e a de terceiros!"
    Privatizações
    Trump - Presidente tem projeto de privatizar a ISS (Estação Espacial Internacional) a partir de 2025, mas há forte oposição do Congresso, incluindo alguns da maioria republicana
    Bolsonaro - Em seu programa de governo afirma: "o debate sobre privatização, mais do que uma questão ideológica, visa a eficiência econômica, bem-estar e distribuição de renda."
    Acordos bilaterais
    Trump - O TPP (Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica) e o Nafta foram desfeitos em seu governo.
    Bolsonaro - Trecho de seu programa de governo: "Propomos, assim, a redução de muitas alíquotas de importação e das barreiras não-tarifárias, em paralelo com a constituição de novos acordos bilaterais internacionais."
    Descentralização
    Trump - Na política americana, os Estados têm maior autonomia administrativa.
    Bolsonaro - Seu programa fala sobre "descentralização e municipalização para aumentar recursos tributários na base da sociedade."
    Redução de impostos
    Trump - Em dezembro, o governo sancionou lei que altera sistema tributário do país, baseada na diminuição dos impostos pagos pelas empresas.
    Bolsonaro - O programa do candidato diz que haverá no governo de Bolsonaro "gradativa redução da carga tributária bruta brasileira paralelamente ao espaço criado por controle de gastos e programas de desburocratização e privatização."
    Questões ambientais
    Trump - No governo Trump, que já fez várias declarações menosprezando o aquecimento global, os EUA deixaram o Acordo de Paris.
    Bolsonaro - Programa do candidato não parece priorizar o tema e afirma em um item que "as Pequenas Centrais Hidrelétricas têm enfrentado barreiras quase intransponíveis no licenciamento ambiental. Há casos que superam os dez anos. Faremos com que o licenciamento seja avaliado em um prazo máximo de três meses."
    Propriedade privada
    Trump - Por seus próprios negócios, sempre foi um defensor da propriedade privada.
    Bolsonaro - Em seu programa o partido coloca que "os frutos materiais dessas escolhas, quando gerados de forma honesta em uma economia de livre iniciativa, têm nome: PROPRIEDADE PRIVADA! Seu celular, seu relógio, sua poupança, sua casa, sua moto, seu carro, sua terra são os frutos de seu trabalho e de suas escolhas! São sagrados e não podem ser roubados, invadidos ou expropriados!"
    DIFERENÇAS
    Questões de gênero
    Trump - "Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para proteger nossos cidadãos LGBTQ da violência e da opressão de uma ideologia estrangeira do ódio."
    Bolsonaro - “Sou contra a ideologia de gênero – vai ensinar filho meu a ser gay na escola?”
    Abertura comercial
    Trump - Presidente já deu declarações em favor da imposição de sobretaxas às importações, implementou sobretaxas e já ameaçou retirar país da OMC.
    Bolsonaro - Frase do programa de governo: "facilitar o comércio internacional é uma das maneiras mais efetivas de se promover o crescimento econômico de longo prazo."
    Veja a galeria: População protesta contra partidos de extrema-direita na Alemanha
  • Saiba a importância do Palmeiras na vida de um corintiano

    Ele comemorou com emoção o título de 1976 do Verdão
    Ele comemorou com emoção o título de 1976 do VerdãoGetty Images/Friedemann Vogel/27-07-14
    De família italiana, viu de perto as dificuldades dos imigrantes que saíram de seu país, da miséria à beira do Vesúvio para a incógnita no Brasil. Ele cresceu em São Paulo, estudou na estadual e fez contabilidade na Álvares Penteado. Contava que dormia em latões na rua para dar tempo de servir o Exército pela manhã.
    Miguel Auricchio era palmeirense. Ainda menino, o vi, enquanto ouvia o jogo em seu rádio no Fusca marrom, vibrar com um gol de Jorge Mendonça, o do título paulista de 1976. Buzinava e acenava para os passantes, emocionado pelo feito de seu time de colônia.
    Encorpado e alto, com o tempo ficou com uma barriga saliente. Passava gel nos cabelos escuros, que começavam a embranquecer, alisando-os para trás.
    Vestia-se de um jeito tradicional, com camisa de manga curta de abotoar, por cima de uma camiseta, e calça social. Usava óculos volumosos e um perfume especial, indispensável para ele. Era um cheiro que transmitia acolhimento, cuidado e segurança.
    Enveredou pelos ramos da contabilidade e imobiliário, em seu escritório na rua Coronel Diogo, alcançando boas condições de vida. Ele morava na Mooca, bairro italiano. Em um prédio de lajotas brancas e azuis, na esquina com a Paes de Barros.
    Bem mais velho, se tornou grande amigo de minha mãe, de quem foi chefe na Arno. Estes anos de carinho paternal o levaram a ser considerado um membro de minha família. Eu o chamava de Tio Miguel e me alegrava todas as vezes em que, à tarde, ele tocava a campainha, entrava todo alegre pelo jardim da minha casa, me trazendo aqueles bichinhos de Marzipan.
    Casado com a tia Lucinda, nunca tiveram filhos. Por isso tratava a mim e à minha irmã com o carinho destinado a um. Foi meu padrinho de nascimento e, durante as férias em Santos, onde tinha apartamento no mesmo prédio que o nosso, curtíamos em família as idas à praia, as conversas dele com meu pai, sobre política, os passeios no orquidário e as perfumadas noites tropicais que aspirávamos durante a ida à sorveteria Royal, de chinelos e sem preocupações.
    Depois, era ir dormir sentindo a maresia se misturar com a voz suave e um pouco rouca do tio Miguel, que permanecia como uma companheira em nossa memória, até adormecermos.
    Ele só não esperava que eu me tornasse corintiano, após me fascinar com a torcida que invadiu o Maracanã e com o gol de meia-bicicleta do Russo. Restou a ele me respeitar. E, aos poucos, para me agradar, foi também mostrando afeição pelo meu clube.
    Se interessava pelos resultados tanto quanto eu. E me levou a vários treinos, junto com meu pai, na Fazendinha, pois era amigo do Isidoro Mateus, irmão do Vicente.
    Era tão zeloso comigo que, quando bati o carro, por culpa minha, e cheguei ao seu escritório, atormentado, foi ele quem me pagou todo o conserto na oficina vizinha, do Alemão.
    Já adulto, às vezes o encontrava em seu apartamento. Já se acumulavam em mim questões que me distanciavam do antigo fanatismo pelo Corinthians. Uma vez, desempregado e após um rompimento com uma namorada, fui visitá-lo no meio da tarde.
    Ele estava se recuperando de um AVC e parecia querer retomar os bons tempos. Não lhe agradava a ideia de que eu, a criança ingênua e companheira de antes, já era um homem com outras preocupações além do futebol ou dos tempos de infância.
    E ele insistia: "O Corinthians tá bem, hein?" Ou "Tá mal, o que está acontecendo?" Sempre quis me agradar e via no Corinthians um pretexto para isso.
    Por causa daqueles tempos, a natural rivalidade que um corintiano teria com o Palmeiras não era algo tão grande para mim. E o que existia foi arrefecendo, até morrer junto com ele, definitivamente, em 2005.
    A imagem que me ficou do palmeirense é a do filho de italiano que gesticula, usa óculos, gel, perfume, é sincero e puro. Divide a fatia do pão e até o time de coração, se necessário for. Como o tio Miguel. E penso que nem me incomodaria se um dia me confundissem com um palmeirense. Ser palmeirense, aprendi, é ser generoso.
  • Menino foi deportado 11 vezes mas insiste: "Nem todo humano é mau"

    Zamir mantém a esperança nos seres humanos
    Zamir mantém a esperança nos seres humanosReprodução/Médicos Sem Fronteiras
    Muitas coisas viraram rotina na vida do menino Zamir, de 11 anos: pobreza, medo, frustração e exclusão. Refugiado do Afeganistão, ele espera entrar na Croácia, rumo a uma vida melhor com sua família na Europa.
    O semblante fechado dos guardas nas fronteiras, porém, não serviu para ele perder a esperança. Nem nas vezes em que foi tratado de forma cruel e autoritária.
    Em entrevista ao MSF (Médicos Sem Fronteira), o garoto mostra, entre embaixadinhas e palavras de otimismo, que aprendeu com a vida a não generalizar. E a buscar a felicidade mesmo em meio às mais difíceis adversidades. 
    Com um sorriso no rosto e brilho nos olhos, ele revela uma certeza que o mantém firme: nem todos os seres humanos são maus. Mesmo tendo sido deportado 11 vezes da Croácia. Porque em outras tantas vezes, alguém também lhe estendeu a mão.
    "Eu não posso dizer que todo mundo é mau. Mas eu fui deportado 11 vezes. Eu já andei por 20 horas, já andei por 15 horas, mas não posso dizer que todos são maus."
    Zamir aguarda, com sua família, em um edifício abandonado na fronteira com a Bósnia, uma oportunidade para entrar em território croata.
    Em um dos cômodos da habitação, ele mostra ao MSF que dorme com sua mãe e dois irmãos em uma tenda de acampamento.
    No colchão ao lado, seu pai dorme com o irmão mais velho de Zamir. O menino, no entanto, não perde a esperança. E continua acreditando nos valores humanos. As duras revistas na fronteira foram também um aprendizado.
    "A polícia má croata me disse: 'Me dê seu telefone". Eu dei para ele. Ele brigou comigo. Ele bateu no meu pai, o empurrou. Mas o bom policial disse: 'você tem telefone?' Eu disse, sim eu tenho. Dei para ele e ele me devolveu. Ele disse 'não conte nada, coloque o telefone na sua calça jeans. Não vou pegar seu telefone.'"
    A linha da fronteira da Bósnia abriga cerca de 4 mil pessoas, que tentam entrar na Croácia. Muito poucos conseguem. O sonho da família de Zamir, que adora jogar futebol, é chegar à França. Lá, ele espera continuar os estudos. Há três anos não vai à escola.
    "Eu quero ir à Europa, mas eu não posso ir à Europa. Eu não posso continuar assim. Eu quero ir à escola. Eu quero ficar mais velho, ser médico, eu quero jogar futebol. Sabe? É isso."
    Ele sabe que, mesmo um dia conseguindo atingir seus objetivos, não poderá se acomodar. Nem o Afeganistão é de todo ruim e nem a França é de todo boa.
    "Todo país tem um lado bom e um lado mau."
    Países, afinal, são feitos de seres humanos.
    Veja a galeria - Imigrantes "deportados": "Se minhas pernas pudessem caminhas cem dias seguidos, voltaria ao Haiti"
  • Sócrates e Palhinha ensinaram o sentido da palavra tabela

    Sócrates toca de calcanhar para Palhinha em treino
    Sócrates toca de calcanhar para Palhinha em treinoAgência Estado/João Pires/25-01-80
    Desde criança a sensação era de solidão, mesmo diante dos outros. Com os amigos da escola, os rótulos se faziam necessários. O garoto era o mais engraçado, apenas isso. Mas ele queria comunicar muito mais coisas. Do que gostava realmente, além daquilo que era aceito. Por exemplo, de pessoas que não eram incluídas e que, por aparência, não podia demonstrar sua simpatia em relação a elas.
    Era um tempo em que o futebol ainda não era moda em seu meio. O jogo era apreciado, claro, mas não como o produto de consumo viralizado a partir dos anos 2000.  E no futebol o menino também se sentia só, como corintiano. Já que seus amigos não ligavam tanto, era ele quem mais sentia as derrotas constantes para o Palmeiras naqueles tempos.
    Poderia descrever com perfeição o cenário em que ouviu parte do jogo de 1977, sentado no bloco de pedra acima da mureta do prédio em Santos. Gol do Palmeiras. Era como se um espinho das plantas do jardim lateral o fincasse. Gol do Palmeiras. E a voz aveludada e inesquecível de Fiori Gigliotti se impregnava em sua mente com a verdade implacável: "É gol, é gol, é gol..."
    Cada vez que ouvia essas descrições literárias, que o faziam imaginar as cenas no gramado, era doloroso. Aliviou-se um pouco, naquele jogo, quando Rosemiro fez um gol contra, chutando alto, ao tentar desviar na pequena área. Mas foi 4 a 2 Palmeiras, um placar que jamais apagou da memória. "Fecham-se as cortinas e termina o grande jogo", como dizia o locutor.
    Vieram outros "É gol, é gol, é gol", sempre mesclados a viagens, a visitas aos tios, a situações marcantes e marcadas por aquela sensação de tristeza que a derrota do Corinthians, o seu refúgio, lhe trazia.
    As noites, após mais um dia em que pouco conversara, ficavam mais melancólicas, na véspera da segunda-feira, retorno da escola, quando ele não teria com quem compartilhar sua decepção. Não sabia se um dia teria condições de vencer aquele "Gigante Alviverde."
    E naquele 12 de novembro de 1978, na cozinha que ficava nos fundos da casa de seus tios em Santo André, ele começou a sentir uma mudança. Viu o início daquele Corinthians e Palmeiras pela TV. Mas, como sempre, à sua maneira solitária, decifrando os meandros do jogo, refletindo a cada toque, buscando se reconhecer em cada jogada. E Sócrates fez 1 a 0, num golaço, chutando à queima-roupa, no ângulo. A bola entrou e saiu rapidamente.
    Então vem uma pausa em suas lembranças, já adulto. E ele só se vê novamente no carro, na continuidade daquele jogo, olhando o prédio quadrado da prefeitura de Santo André, enquanto seu pai fazia o contorno da praça rumo a São Paulo. Sentia-se bem. Parecia que aquela sensação estava sendo transmitida, dele para Gigliotti e do narrador para os jogadores.
    Ouviu pela primeira vez a palavra tabela, graças à dupla Sócrates (que chegara meses antes) e Palhinha (que chegara em 1976). Sócrates desarmou no meio, tocou alto para Palhinha, que, na mesma sintonia, tocou, recebeu na frente, driblou o goleiro Gilmar, esperando Sócrates se livrar de Marinho Peres, que o agarrara tentando impedir a avalanche que já se iniciara. E tocou. Sem goleiro, Sócrates fez o gol. Depois veio o terceiro, com Vaguinho. Desta vez, o "É gol, é gol , é gol", estava a favor dele.
    Foi sublime. Do carro, ele, incrédulo, sinalizava para os veículos ao lado, "3 a 0, 3 a 0, no Palmeiras!!!" Só ouvia seu pai rir, satisfeito, de sua felicidade. A mãe também se contagiara e vibrou. Mas só ele sabia o caminho que acabara de desbravar. Descobriu que a tabela sempre esteve presente em sua vida. Ele é que não a usava bem.
    Passou, desde então, a sempre procurar a tabela com os que não o ouviam. E a tentar encontrar seus objetivos por meio dela: onde ir, o que fazer, como entender. A sorrir mais na tabela com a escola. E com os pais, com os amigos, com os parentes, com Gigliotti, trocando sempre alguma coisa boa, por outra similar. Foi tabelando com a história que ele descobriu que o drama não era tão grande. Em 1977, afinal, o Corinthians ganhou mais do que perdeu do Palmeiras.
    E mesmo assim, se todas essas tentativas de tabela, de vez em quando, não dessem certo, ele jurou não desistir. Estar sem companhia, imerso em seus pensamentos, nas salas de visita, no pátio do recreio ou no meio da multidão, passou a não importar tanto. Mesmo quando a tabela não fosse perfeita, se convenceu de que não estaria totalmente só. Estaria apenas tabelando com o universo.
  • Como encontrei uma vaga na porta da Cidade Velha de Jerusalém

    Portão de Damasco é um dos principais do local
    Portão de Damasco é um dos principais do localGetty Images/Chris McGrath/12-01-17
    Para os mortos, o cemitério do Monte das Oliveiras, em Jerusalém, é um lugar disputado. A religião judaica diz que lá é um local sagrado.
    Mas para os vivos, que percorrem as ruas no entorno da Cidade Velha, um dos pontos mais disputados é outro: uma vaga para estacionar nas redondezas.
    O local, de frente para o cemitério, vive repleto de ortodoxos judeus, religiosos cristãos, pessoas com trajes islâmicos, turistas, trabalhadores e estudantes, entre tantos, a percorrerem aqueles quarteirões com reverência e encanto.
    Cheguei dirigindo o carro alugado, em meio a solavancos, a pedidos para as crianças se sentarem, a reclamações quanto ao caminho, junto com minha família.
    Bairros árabes, bairros judaicos, grandes avenidas, parques, ruazinhas abarrotadas de lojas, ruas cheias de curva, a subida rumo à Cidade Velha. Tudo lá fora prendia nossa atenção.
    Assim que fizemos a curva junto à entrada ao lado das muralhas, algo inédito aconteceu. Pelo menos para mim.
    Um menino de blusa azul, bermuda, cabelos lisos e escuros, sentado na mureta, me apontou, indicando que logo à frente havia uma vaga. Estava com amiguinhos e era morador da região.
    Uma vaga na frente do portão de Damasco em Jerusalém! Vibrei, estacionei e logo agradeci ao garoto, fazendo aquele gesto de que depois eu acertaria a gorjeta.
    Entramos por portas em arcos, túneis, descemos escadas de pedra em meio a árvores, passamos pela esteira da segurança e nos deparamos com o encanto do Muro das Lamentações.
    Por ruelas milenares, observamos também a efervescência local, andando pelo estreito mercado árabe, em meio a mercadorias de todos os tipos e vendedores tentando atrair a atenção.
    Sentimos o clima de devoção, percorrendo quarteirões mais silenciosos, de centros de estudos e instituições evangélicas situadas no coração de Jerusalém, coloridas pela tonalidade laranja dos raios de sol.
    Muito mais do que atritos de tempos em tempos entre membros das comunidades judaica e árabe, senti também prevalecer um clima de convivência, na cidade embebida de luz.
    Mesmo nestes nossos tempos de discórdia. Mesmo sob o tempo nublado. Uma neblina que às vezes envolve aqueles muros como se fosse a presença do véu de espiritualidade que abraça as montanhas da Judeia, onde fica a cidade sagrada.
    Na saída, seguindo o hábito arraigado no Brasil, fui dar um dinheiro ao menino, que passara a tarde por lá, conversando com os amigos. Fazia questão de recompensá-lo, mesmo com uma quantia módica, pela indicação da concorridíssima vaga.
    Ele estava sentado na mureta, diante da calçada. E ficou sem entender. Em Jerusalém, isso não existe. Percebi então que ele me indicara a vaga com a única intenção de ajudar. E não aceitou o dinheiro. Saí de lá sem graça.
    Os meninos de Jerusalém não olham carros. Muitos guardam outros conceitos que sobreviveram às guerras e às tentativas de destruição, naquele local que é um mergulho nas profundezas da humanidade. Gentileza é um deles. Tão antigo e dourado quanto a própria cidade.

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