sexta-feira, 6 de março de 2020

Posted: 05 Mar 2020 07:21 AM PST

A sanitarista Monique Rodrigues, do Rio, que defende o feminismo cristão – Ricardo Borges/Folhapress
Publicado na Folha de S. Paulo
A fotógrafa Bianca Aparecida Casadei, 24, está tão acostumada com outros evangélicos julgando seu feminismo que até apelido tem para essa turma: “Porteiros do céu”.
São pessoas, diz, que se acham no direito de barrar outras que não considerem aptas a dividir o mesmo banco da igreja. “O mais educado é gente curiosa tentando entender como conciliar a fé e tal, mas há muito de ‘vocês são hereges’, ‘vão para o inferno’.”
A recepção no outro campo não fica muito atrás também. Chamar de falsa feminista é uma das reações mais leves, diz sobre o que ouve de progressistas resistentes a aceitar que, para ela, uma coisa não anula a outra: dá, sim, para ser evangélica e lutar pelos direitos das mulheres.
“Como diz o ditado, é muito cacique para pouca tribo”, afirma. “Existem tantas intersecções, e essa pluralidade é o que faz o feminismo ser tão amplo.”
É de muitas a luta para que crença e ativismo deixem de ser vistos como água e azeite. Parte desse grupo se reúne em páginas virtuais como a Feministas Cristãs, que junta 5.200 mulheres no Facebook e da qual Bianca é uma das administradoras.
Ali discutem de assédio sexual nas igrejas ao Jesus com corpo de mulher que a Mangueira apresentou no Carnaval. A legenda “se esquivando do fanatismo religioso” acompanha uma foto de dois boxeadores. Outra imagem mostra o “T” da sigla LGBT como uma cruz tombada.
Fiéis assistem a culto dominical na Assembleia de Deus em Belém (PA), com a presença do pastor Samuel Câmara – Thiago Gomes – 17.nov.2019/Folhapress
Quando uma participante compartilha reportagem sobre um projeto de lei aprovado em Utah (estado americano de maioria mórmon) para descriminalizar a poligamia, outra lamenta: “Péssimo, pois é poligamia para homens religiosos. Reduz os direitos das esposas, economicamente vulneráveis nessas comunidades”.
Elas sabem que são minoria no segmento e também nas cercanias progressistas. Pesquisa Datafolha divulgada em abril de 2019 mostra que 32% das evangélicas se dizem feministas, ante 40% das católicas e 57% entre mulheres que não têm religião.
Um texto publicado originalmente por um site americano cristão dá uma boa síntese sobre a má vontade entre evangélicos com o movimento.
“A maioria das feministas não gostam muito do desígnio de Deus para os gêneros”, diz o escrito replicado por projetos evangelizadores como o pró-abstinência sexual Eu Escolhi Esperar. “Não gostam da ideia de Eva ter sido criada como uma auxiliadora de Adão. Simplesmente não gostam dessas coisas.”
Defesa do direito ao aborto (“homicídio do bebê”) e “libertação completa de limites sexuais e morais” são outras bandeiras associadas ao feminismo e que seriam inaceitáveis para uma vida em cristandade.
Grandes igrejas também torcem o nariz para a causa, como na fala de Cristiane Cardoso transcrita no site da Universal, liderada por seu pai, o bispo Edir Macedo. Nossa singularidade como mulheres tem sido ofuscada pelas filosofias do feminismo e pela imoralidade que preenche todos os aspectos de nossa cultura”.
À frente do Godllywood, Cristiane diz que esse projeto da igreja voltado a mulheres “foi feito para ser um refúgio das atitudes negativas e também um lugar onde a verdadeira feminilidade pode crescer através do ensinamento baseado nos mandamentos bíblicos”.
Damares Alves, ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos é pastora e declarou-se feminista em entrevista ao Estado de S. Paulo. Às “feministas que me criticam tanto”, aconselhou: “Poderiam usar o meu exemplo na luta delas. Sou uma mulher que veio lá de baixo, não tinha nem sapato para ir à escola e hoje é uma ministra”, disse em 2019.
Mas feministas cristãs não costumam se ver espelhadas na ministra. Entre os vídeos de Damares que resgastam, está um dela num culto de 2015: “Sabem por que [feministas] não gostam de homem? Porque são feias e nós somos lindas”.
Para a teóloga Priscilla Ribeiro, “algumas pessoas entendem o termo ‘feminista’ de maneira equivocada, como se ele invocasse ódio aos homens, não a igualdade entre os gêneros”. E “não só homens, mas também mulheres já me silenciaram por defender pautas históricas do movimento”, diz a fiel da Igreja Cristã Carioca.
Fundadora da EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero), Valéria Vilhena, 49, sente o preconceito partir tanto das igrejas quanto da esquerda. “A pergunta que mais ouvimos: como assim, feministas e na religião do opressor?”
“Mas penso que as feministas, e os progressistas em geral, devem sempre lembrar que a religião é central na vida de muitas mulheres. Para nós, a Bíblia nos ajuda a resgatar a capacidade de indignação. Então, estigmatizar é cair na mesma armadilha do desconhecimento, inclusive histórico.”
Muitas feministas eram cristãs, lembra Vilhena. “Uma das histórias que mais amo é a de Sojourner Truth, negra, pentecostal. Em 1851, a pastores que discutiam direitos das mulheres, conclamou: ‘Pari 13 filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão. […] Ninguém a não ser Jesus me ouviu. Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de consertá-lo’.”
A sanitarista Monique Rodrigues, 38, diz que a ponte entre Bíblia e feminismo sempre existiu. “Vejo Jesus Cristo de Nazaré que, fazendo frente à cultura de seu tempo, relacionou-se de forma horizontal com mulheres, como a mulher samaritana.”
Ao contrário das outras, ela diz não se sentir discriminada pela esquerda, pois “as críticas se direcionam a uma igreja hegemônica que, infelizmente, existe como a antítese de Cristo. Mas é importante pontuar que não só na ala evangélica, mas em todas profissões de fé, existem grupos que se contrapõem ao que está posto, e eles precisam ter seus lugares de fala preservados nos meios progressistas”.
Também não vale revestir o feminismo só com “capa esquerdista”, diz a estudante Renata Silva, 21, da Assembleia de Deus. “A agenda foi sequestrada pela esquerda. Pra mim, é a grande cagada do feminismo, porque aliena várias mulheres que poderíamos agregar.”
Ela mesma, autodeclarada conservadora, se vê como exceção. “Falar em direito da mulher engloba várias coisas. Tipo, eu posso discordar do aborto, e discordo, mas lutar com unhas e dentes pela Lei Maria da Penha. E unhas com esmalte, tá?” (O dela é rosa.)
  
Posted: 04 Mar 2020 07:25 AM PST

Manuel, a esposa e os três filhos
Publicado na BBC
O paraense Manuel Valente está entre os mais de 240 homens católicos e casados da Amazônia que, nos últimos três meses, esperaram ansiosamente por um sinal verde do Vaticano para se tornarem padres.
Manuel e seus pares são diáconos permanentes, um grupo de homens que fica abaixo de padres e bispos na hierarquia da Iigreja, mas que pode celebrar batismos e casamentos, veste batina e clérgima (o colarinho típico dos sacerdotes), embora não precise optar pelo celibato.
Em outubro do ano passado, numa decisão histórica, 128 bispos contra 41 votaram a favor da “ordenação como sacerdotes de homens idôneos e reconhecidos pela comunidade, que tenham um diaconato permanente fecundo, podendo ter família legitimamente constituída e estável” em regiões remotas da Amazônia.
A decisão preliminar do Sínodo da Amazônia, que dependia da chancela do papa Francisco e visava a responder à escassez de padres na região, era vista como a chance de reconhecimento pela igreja ao trabalho de homens que, como Valente, pregam a fé católica sem qualquer remuneração.
Na prática, eles são o rosto da Igreja em locais remotos, onde um único padre precisa se desdobrar entre dezenas de pequenas capelas espalhadas em longos arquipélagos fluviais. Em locais como Cametá (PA), município formado por centenas de ilhas onde vive Valente, comunidades católicas passam até um ano sem participar de nenhuma missa.
O relatório final assinado pelo papa Francisco saiu na semana passada — e surpreendeu ao simplesmente ignorar o tema. O episódio é lido como uma concessão do papa às alas conservadoras da igreja, que temiam um primeiro passo rumo a um suposto fim definitivo, em prazo mais longo, do celibato entre os padres.
‘Fiquei frustrado’
O depoimento de Valente à BBC News Brasil traz uma rara oportunidade de mergulho nos desafios que a Igreja Católica enfrenta em uma das regiões mais isoladas do planeta — onde, ao mesmo tempo, igrejas evangélicas se multiplicam impulsionadas pela ausência de dogmas como o celibato para pastores.
Segundo o Datafolha, a região Norte é a única do país onde há empate técnico entre evangélicos (46%) e católicos (45%) — no resto do país, católicos são 51% e evangélicos, 32%.
A voz de Valente também ilustra a rotina de centenas de homens que professam sua fé, mas não abrem mão do convívio familiar, nem se esquivam de temas considerados tabu, como relações sexuais.
Procurada, a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos) preferiu não comentar. A seguir, o depoimento de Valente à BBC News Brasil:
“De antemão, o que eu posso lhe dizer é que fiquei frustrado (com o relatório assinado pelo papa).
Tenho 46 anos e estou junto com minha esposa há 24. Nosso filho mais velho tem 22, a do meio tem 21 e o caçula tem 20. Eles contam que, quando saem por aí, sempre vem alguém e pergunta: ‘Tu que é filho do padre, né?’.
E aí eles respondem: ‘Não… Poderia, mas meu pai é o diácono’.
A gente esperava que isso fosse mudar com o sínodo, mas os gritos do povo da floresta mais uma vez não foram ouvidos.
Jesus Cristo disse: ‘ide e evangelizai’. Mas quem conhece o chão é o pé que nele pisa. Os bispos que escreveram o relatório do papa não sabem subir num açaizeiro. Não sabem jogar uma tarrafa (rede típica de pesca). Não sabem remar e nunca sentiram o rio nos pés.
Entre o rio e a floresta tem um povo sofrido, gente que precisa de Deus e que consegue falar por si mesma. Mas o Sínodo mostrou que a igreja ainda está presa e não consegue se libertar de dogmas tão antigos, mas tão antigos, que já deveriam ter caducado.
Eu nasci e moro até hoje em Cametá, um município no nordeste do Pará que vai completar 400 anos. Só aqui, tem 420 ilhas povoadas. Quase todas elas têm capelas.
Então, só aqui, tem quase 400 comunidades cristãs espalhadas pelo rio Tocantins. Para ir da primeira à última, a gente gasta no mínimo duas horas de voadeira (como são chamadas as lanchas rápidas na Amazônia).
Em uma das paróquias, existe um padre para 50 capelas. Tem comunidade que é tão distante que o padre leva dois, três anos para conseguir visitar.
Então, eles até me chamam de padre, porque eu consigo ir duas ou três vezes no ano nos fins de semana.
Manuel, a esposa e os três filhos
Eu tentei ser padre. Me apaixonei por São Francisco de Assis quando era bem jovem. Aí entrei no seminário e me tornei um frade franciscano. Como São Francisco, eu acredito que a maior riqueza da igreja são os pobres. O próprio Cristo disse isso, né? Mas não foi o que senti lá dentro, não achava que isso era vivido de forma intensa e radical entre os franciscanos.
Aí saí da igreja e continuei minhas atividades.
Eu sou músico, meu avô era mestre de banguê e minha mãe é dançadeira de samba de cacete (ritmos tradicionais afro-brasileiros presentes em comunidades do baixo Tocantins). Sou formado em História, depois fiz mestrado em Ciências da Religião e doutorado em Antropologia.
Foi durante o mestrado que eu fui chamado pelo pároco para ser diácono permanente. Ele sabia que eu tinha sido frade. Mas teve gente que não era muito a favor.
Eu entrei na escola diaconal e senti o preconceito de perto. Me chamavam de ‘diaconeiro’ — mistura de diácono com macumbeiro, porque eu sempre trabalhei com as benzedeiras, os quilombolas e a medicina da terra.
Mas sobrevivi e fui ordenado diácono permanente em 2016.
Como diácono, eu faço parte do clero e atuo em três dimensões: a da palavra — faço a pregação no altar —, a litúrgica — auxilio o bispo e os padres quando eles celebram a missa — e a dimensão da caridade, que é a mais importante.
Na nossa diocese, para ser diácono permanente, como eu, você tem que ter ensino médio e uma fonte de renda própria, porque o nosso serviço eclesiástico não é remunerado.
Então, eu sou professor. Tem outro que é comerciante. Outro é autônomo.
Um diácono permanente como eu só pode ser ordenado padre se a esposa dele falecer.
Aí eu pergunto: você sabe qual é a maior riqueza da igreja? É a família. O papa João Paulo 2º dizia isso. Então, por que impedir um homem de ser sacerdote só porque ele tem família? Qual é o problema de um sacerdote católico ser casado, se a família é uma benção e não um erro?
Pela Sagrada Escritura, os apóstolos eram casados.
Ah, mas podem dizer que se o padre for casado, ele não vai ter tempo para a Igreja, não vai ser exclusivo.
E eu respondo: se pudéssemos ser casados, o número de padres aumentaria!
Eu me casei dois anos antes de entrar na escola diaconal. A gente vivia juntado. Minha esposa também trabalha na igreja e é ministra da sagrada eucaristia.
No domingo, todas as comunidades devem celebrar a missa. Mas aí você tem a realidade. O padre só consegue celebrar a missa em uma igreja. Nas outras, cabe a nós, diáconos, e aos ministros de eucaristia, como a minha esposa, distribuir a eucaristia na falta de missa.
Como diácono, eu uso uma veste semelhante à do sacerdote. O padre usa túnica e estola, e nós usamos a túnica com estola colocada em outra posição.
Na vida pessoal, bom, a gente pode ter um casamento normal.
Posso ter sexo, afinal nós nos casamos e para que um casamento aconteça plenamente as relações sexuais afetivas devem ocorrer naturalmente.
Muita gente não sabe disso, mas se de repente um casal para de se relacionar sexualmente, o católico deve explicar ao bispo por quê. Se um marido não procura mais a esposa, ela pode compartilhar isso com bispo. E vice-versa, o marido também.
Portanto, a nossa vida sexual é normal, graças a Deus.
Eu acho que a maior barreira, a maior dificuldade do padre, não é a ausência de sexo. É a solidão, a maior inimiga do ser humano.
Lembro que uma vez vínhamos de uma missão na estrada e o padre disse que deixaria eu e minha esposa em casa e que voltaria para a sua solidão. Aquilo me marcou muito.
Nós temos muito medo da nossa sexualidade porque nós nos desconhecemos. O cristão tem muito medo do corpo dele, dos sentimentos carnais. Parece que o corpo é contraditório ao espírito. Mas não existe uma briga entre corpo e espírito. Eles não são diferentes, não são antagônicos, ambos estão casados dentro do ser e só se desatam com a morte.
Mas não acho que tenha sido isso que influenciou no silêncio do papa sobre a ordenação de homens casados como eu.
O sínodo não atendeu a todas as expectativas do povo cristão que vive na Amazônia, que esperava que ele fosse mais prático. O resultado mostrou que estamos presos dentro dessa película que se chama burocracia clerical e que a igreja não teve forças para furar ou romper.
Em muitas comunidades da Amazônia, católicos só têm acesso a uma missa por ano, e às vezes nem isso, porque o número de padres é muito pequeno.
Aí eu te pergunto: por que privar o povo amazônico dessa riqueza? O sínodo não nos deu essa resposta.”
  

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